Crítica: “Um Homem Comum”

É difícil explicar a Guerra Civil Iugoslava. Resultado de problemas que surgiram desde o estabelecimento da Iugoslávia no começo do século XX, após a Primeira Guerra, piorados pelas ações do ditador Josip Broz Tito. De uma maneira resumida, foram uma série de conflitos étnicos e guerras de independência que percorreram a década de 1990, até o começo dos anos 2000.

Foram conflitos cruéis, particularmente no que tocam os crimes de guerra contra a humanidade como principais características. Limpezas étnicas de diversos níveis foram feitas, incluindo genocídios, e outras monstruosidades. Dois destes crimes foram o horrendo cerco a Sarajevo, o mais longo das guerras modernas durando 4 anos, e o Massacre de Srebrenica.

Ambas as ações resultaram em trocidades horrendas demais para serem descritas aqui rapidamente. Foram de responsabilidade total ou parcial do mesmo homem, o General Ratko Mladić, que apenas foi preso e julgado por seus crimes anos depois do conflito, já nos anos de 2010.

Inspirado na história da evasão da justiça deste homem, o filme “Um Homem Comum” (A Common Man) segue a história d’O General (Ben Kingsley), cujo nome completo nunca sabemos, e sua própria fuga da justiça, pulando de um esconderijo para outro, pois sua necessidade de sair, sempre supera sua necessidade de segurança, sejam quais forem os motivos. Em uma destas ocasiões, Tania (Hera Hilmar), a empregada da antiga inquilina, acaba por aparecer, o que representaria um risco para O General, porém ele a contrata mais uma vez. Mas as aparências em enganam.

O longa é discrepante da filmografia do diretor Brad Silberling, responsável por filmes como “Cidade dos Anjos” e “Desventuras em Série”. A temática trata de assuntos mais delicados que os demais filmes do diretor/roteirista, afinal, como demonstrado acima, o personagem principal é inspirado em uma figura responsável por crimes terríveis.

É interessante a condução da trama, a forma como somos levados a não só perceber o personagem como humano, mas até mesmo simpatizar com ele, algo que para pessoas mais sensíveis pode ser bem embaraçoso. Apesar disto, somos constantemente lembrados que ele é uma pessoa atroz, em especial quando reconhece os crimes que cometeu, poucas vezes ou nunca se arrependendo do que fez, e isso reforça essa sensação incômoda.

Ainda assim, a forma como se humaniza o protagonista não se justifica, ainda que o próprio sempre tente fazê-lo. Outro fato complicado é que o filme levanta ainda a existência de simpatizantes ao General, e não somente entre seus apoiadores diretos, mas entre jovens e pessoas de mais idade do povo ao redor da cidade, dentre eles a própria Tania.

As atuações são regulares. Ben Kingsley e Hera Hilmar formam um bom par nas telas e o interessante conflito de gerações entre os dois dá um tom diferente a uma trama que soaria comum a um título de espionagem. O ator consegue fazer muito bem um monstro mesmo tendo sua carreira marcada por fazer um personagem que lutava principalmente de maneira pacífica. Já a atriz entrega uma personagem que ao mesmo tempo enfrenta e admira o General.

A fotografia é fantástica, e é um grande crédito para Magdalena Górka, diretora da categoria. A evolução da paleta de cores, de cinzenta para tons vivos de amarelo e âmbar, acompanha a evolução do personagem. Além disso a escolha de planos e ângulos é sempre muito apropriada. A música é pontilhada por obras de origem Sérvia, e a trilha original – em suas partes para piano solo, com suas inspirações eslavas – parece uma mistura entre Bartok e Satie, dada a influência do segundo nas músicas do compositor Chilly Gonzales, um dos compositores da trilha ao lado de Cristopher Beck.

Há alguns problemas críticos: a humanização do protagonista é curiosa, mas ao mesmo tempo parece feita sem o devido cuidado, e a atuação de Ben Kingsley apesar de ser boa não tem um papel tão forte para que ela acompanhe. O filme também parece não reconhecer o impacto do mundo ao redor aos aspectos negativos. É claro que o manterão em áreas cuja maioria étnica é apoiadora ou tem opinião neutra, mas ainda assim alguns momentos beiram ao absurdo. A impressão é que se tem a visão de um estrangeiro sobre o conflito, e isso prejudica um tanto a autenticidade.

“Um Homem Comum” é um filme interessante. Trata de um conflito pouco explorado do século XX, coberto de controvérsias, e horrores. Ainda que talvez não seja o melhor sobre o assunto, faz-nos lembrar um detalhe tremendamente assustador sobre os responsáveis por atrocidades: eles são humanos, e não monstros.

por Ícaro Marques

*Texto originalmente publicado no site CFNotícias.

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