Crítica: Um Lindo Dia na Vizinhança

É impossível definir em que momento a humanidade se tornou tão descrente. E não falo nada relacionado à fé religiosa, mas, como é difícil acreditar que haja pessoas boas de verdade, que imprimem a diferença na vida daqueles que as cercam, simplesmente por fazerem de suas existências algo a se celebrar.

Essa descrença permeia a biografia dramática “Um Lindo Dia na Vizinhança” (A Beatiful Day in the Neighborhood) quase em sua totalidade, e é ela quem faz o espectador manter o interesse pela narrativa do longa dirigido por Marielle Heller e roteirizado por Micah Fitzerman-Blue e Noah Harpster.

A história é baseada em “Can you say… Hero?”, artigo publicado na revista Esquire, de autoria do jornalista Tom Junod (que na produção ganha o nome de Lloyd Vogel  e é interpretado por Matthew Rhys).

O profissional conhecido pelo cinismo e acidez com os quais escreve seus trabalhos, se vê diante de uma missão que parece simples e que por isso mesmo vai mudar sua vida: escrever um pequenino perfil sobre uma das figuras mais adoradas do imaginário infantil americano, por mais de três décadas, Fred Rogers (Tom Hanks).

Após um primeiro – e a princípio, único – encontro pouco amigável, a dupla de protagonistas entrega personalidades opostas em cena: enquanto Lloyd tem um relacionamento conturbado com seus familiares – fruto de problemas enfrentados no passado, que acabaram por intervir diretamente em seu caráter e postura mediante as outras pessoas, Sr. Rogers é visto como alguém a ser seguido como exemplo sublime de bondade e paciência.

Mas, é claro que, felizmente, nem tudo pode ser resumido de maneira tão simplista, e, durante a projeção, facetas mais profundas são trazidas à tona para lembrar o quanto o ser humano é dotado de inúmeras vertentes que, juntas, fazem com que sejamos capazes de carregar tanto um herói quanto um vilão dentro de nós. Cabe a cada um saber o que fazer com essas duas frentes tão ambíguas.

Através do uso de miniaturas dos cenários do programa infantil apresentado pelo Sr. Rogers, somos conduzidos ao coração da narrativa. Com a trama sendo conduzida como se fosse um episódio, progressivamente deixamos de ser plateia em uma sala de cinema, para nos tornarmos espectadores da atração televisiva e isso consegue nos aproximar dos personagens de modo sutil e eficiente.

Não há grandes reviravoltas, o roteiro é bastante previsível, mesmo para quem não tem conhecimento prévio sobre os fatos que serviram como inspiração para a criação da obra, mas isso não deve, em absolto, ser visto como demérito. É justamente essa simplicidade que faz com que haja uma bem-vinda fluidez desde os minutos iniciais.

Com uma atuação sublime de Tom Hanks (que lhe rendeu sua sexta indicação ao Oscar, dessa vez como Melhor Ator Coadjuvante), o filme ganha muito em qualidade e capacidade de emocionar. São vários momentos que devem levar os mais sensíveis às lágrimas, seja por tocar em assuntos como bullyng e perdão, seja por evocar um minuto inteiro de silêncio durante o qual há uma proposta de franca reflexão – inclusive para quem está assistindo, com uma sutil, porém arrebatadora quebra da quarta parede.

Vale conferir.

por Angela Debellis

*Texto originalmente publicado no site A Toupeira.

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