Crítica: “O ódio que você semeia”

A cena inicial de “O ódio que você semeia” (The Hate U Give) não tem nenhuma violência explícita, nenhum tipo de arma física. O que vemos em tela é uma família – pai, mãe e três filhos – ao redor de uma mesa em sua residência. E ainda assim, essa é uma das sequências mais impactantes do filme dirigido por George Tillman Jr.

Porque o teor do diálogo não é o “trivial do dia a dia”, como o que as crianças fizeram na escola ou como foi o dia de trabalho dos pais, mas envolve o precoce conhecimento de rígidas e necessárias regras de sobrevivência, que incluem a noção dos chamados Dez Pontos do grupo conhecido por Panteras Negras.

Sete anos se passam na narrativa e a adaptação do livro homônimo de Angie Thomas leva às telas a história da agora adolescente Starr Carter (Amandla Stenberg, em ótima atuação), que aos 16 anos, testemunha o assassinato do amigo Khalil (Algee Smith), erroneamente abordado por um policial que julga tê-lo visto com uma arma em mãos.

Sem mais nenhum tipo de prova, a palavra da jovem é a única coisa que poderá ser usada na tentativa de levar o policial a julgamento. Mas, há um aceitável e óbvio temor por parte dela – e de sua família – que creem que seu depoimento poderá colocar em risco a vida de todos, já que Khalil estava trabalhando para King (Anthony Mackie), o traficante mais poderoso do subúrbio em que moram.

Além disso, Starr também se encontra dividida entre dois mundos distintos: o bairro modesto em que vive – onde a maioria de moradores é negra – e o colégio de classe alta em que estuda por escolha dos pais – que fica afastado de sua casa e é frequentado basicamente por alunos brancos, incluindo seu namorado Chris (K. J. Apa). Como ela mesma diz, é como se houvessem duas adolescentes distintas em um mesmo corpo e cabe a ela trazer a que for mais “conveniente” à tona.

O que mais choca é perceber a facilidade com que se cria um círculo vicioso, que se inicia com o preconceito, passa pela raiva e indignação e se fecha com o medo. Se é o nome de Khalil que está em destaque, há de se lembrar de tantos outros que tiveram tristes e semelhantes destinos, com uma morte precoce e injusta – inclusive a melhor amiga de infância de Starr, assassinada aos 10 anos de idade, também em frente a ela.

Vale destacar que nos momentos finais do longa, há outra cena desconcertante. Aliado às fortes imagens, o texto narrado pela protagonista é impecável ao propor uma reflexão sobre o ódio que semeamos e que destrói todos ao nosso redor (em suma, a filosofia pregada pela expressão “A Thug Life”, criada pelo rapper Tupac, também explicada e mais de uma vez citada durante a projeção).

A violência explícita mata, mas o que dizer da violência psicológica? E daquela velada, que chega a surpreender quando se evidencia? Ao transitar por todas essas vertentes, o filme consegue naturalmente prender a atenção (entenda-se tirar o fôlego, de maneira literal, em alguns momentos) dos espectadores.

Apesar de a história contar com personagens fictícios, é baseada em fatos e mortes reais. Dói imaginar quantas versões da injustiça e da intolerância são encontradas em nossa sociedade que parece tão evoluída em certos aspectos, mas tão retrógrada em outros – em particular no que se refere a ter respeito ao próximo.

Imperdível.

por Angela Debellis

*Texto originalmente publicado no site A Toupeira.

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