Crítica: A Verdadeira História de Ned Kelly

“O herói de um é o vilão de outro”. Talvez não exista melhor frase para resumir a ambiguidade de qualquer figura histórica, até mesmo fora-da-lei. Um exemplo clássico disto são os chamados “bandidos sociais”, que surgem em meio a enormes desigualdades sociais, e acabam encontrando a saída na criminalidade.

Neles, é mais claro do que em qualquer personagem da História a ambivalência herói-vilão: para alguns, eles são a quebra do status quo, uma rebelião contra o sistema injusto, algumas vezes mais justo do que o próprio governo; para as suas vítimas, que às vezes também estão à margem da sociedade, mas geralmente estão amparadas pelos poderes oficiais, são pessoas cruéis e terríveis que espalham sofrimento por onde passam.

Nenhuma visão é incorreta, nem correta. Eles carregam em si a ambiguidade de uma situação mais complexa do que um simples maniqueísmo.  No Brasil, temos Lampião e seu bando; nos Estados Unidos, Billy The Kid; na Europa, a lenda de Robin Hood; e na Austrália, Ned Kelly.

“A Verdadeira História de Ned Kelly” (True History of the Kelly Gang) traz a vida do polêmico e simbólico criminoso australiano descendente de irlandeses, que foram levados para a colônia penal de Vitória, e lá tentam construir a vida em meio às agruras do ambiente, a impiedade das autoridades, e o tormento dos fora-da-lei.

O filme segue o ponto de vista de Kelly, baseado em seus escritos, no entanto, sem abandonar a questão da dúvida dentro da narrativa, desafiando o questionamento às narrativas oficiais, em especial quando esta vem dos grupos detentores de poder, e desta forma podem distorcer o que é fato do que é difamação.

No entanto, acaba abraçando demais o texto de Kelly, que em si é um texto auto apologético, e perde um pouco da ambiguidade neste ponto. Por sua vez, em outros transborda, em particular da masculinidade: as relações entre Ned e seu melhor amigo Joe, são claramente homoeróticas, ainda que não consumadas; todos os membros da gangue se vestem com vestidos; a relação de amor entre a mãe do criminoso e ele é mais próxima do que seria em longas com personagens mais tradicionalmente masculinos, etc. Mesmo que em alguns momentos venha a amenizar ou justificar, a desconstrução da hipermasculinidade é constante, e usando o próprio símbolo australiano desta.

Um fator interessante é que o drama de ação não tenta alcançar uma fidelidade histórica em seus visuais, figurinos e cenários: ao contrário, procura um estilo próprio, abandonando o visual barbado de Kelly, por um quase digno de punk – música que permeia vários momentos da trilha sonora –, suas roupas não necessariamente eram moda de época, os locais são questionáveis se eram daquela forma no meio do século XIX.

Por um lado, isso pode ser incômodo para os mais fanáticos por veracidade histórica, por outro isso torna o filme único, muito mais harmonizado com a ideia de rebelião e revolta que permeia toda a produção.

Isso se reflete também na fotografia, que várias vezes tem como foco o estilo e a narrativa visual, trabalhando muito bem a questão das cores, em particular, a questão de contraste e consonância destas. A trilha também segue por essa ideia, misturando momentos orquestrais com música punk, nunca deixando para trás o clima estranho e sombrio.

A atuação é igualmente de grande qualidade: George Mackay faz jus às suas nominações e premiações, e consegue expressar muito bem a evolução de Kelly, do momento em que tenta levar uma vida honesta, até quando decide abraçar o legado violento de sua família, e se torna um símbolo da resistência contra o governo britânico.

“A Verdadeira História de Ned Kelly” não é o título histórico mais fiel ao período, mas faz sua mensagem clara. Além disso, é muito mais interessante por trazer às telas uma questão de rebelião que transborda a questão da pobreza e opressão política, também questionando masculinidade, destino e ligações familiares.

por Ícaro Marques

*Texto originalmente publicado no site CFNotícias.

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