Crítica: “Beau tem medo”

Há algum tempo, saúde mental tornou-se um assunto que, felizmente, ultrapassou as barreiras de divãs de terapeutas e paredes de clínicas psiquiátricas. Talvez seja por isso mesmo que a proximidade com o protagonista de “Beau tem medo” (Beau is afraid) pode parecer tão singular para parte do público.

Beau Wassermann (Joaquin Phoenix) é um homem de meia idade cuja rotina é composta pela solidão e pelo caos. E, embora pareça contraditório, o desolador prédio em que vive – habitado por vizinhos indóceis e localizado em uma área que alterna tráfico de drogas, prostituição e assassinatos – torna-se uma espécie de porto seguro, como se dentro do imóvel, o barulho “de fora” não pudesse afetá-lo.

Mas, conforme os 179 minutos de duração do longa escrito e dirigido por Ari Aster se passam, e ao ver os inúmeros elementos que cercam o personagem, mais cresce a nossa dúvida sobre até que ponto seria justo dizer que o interior de Beau é o ocasionador de seus medos, aflições e angústias. Não é difícil perceber (ainda que de forma bastante sofrida) que o mundo exterior também é grande responsável por passagens marcantes de sua existência.

Logo no início da produção, tornamo-nos espectadores da vida de Beau. De seu complicado nascimento, passando por flashbacks de sua infância / adolescência (quando é interpretado por James Cvetkovski / Armen Nahapetian, respectivamente). Mas é na maturidade de seus quase 50 anos, que o vemos enfrentar – à sua peculiar maneira – a realidade incontrolável.

Prestes a pegar um avião para visitar sua mãe, Mona Wassermann (Zoe Lister-Jones / Patti LuPone), um inusitado fato faz com que tais planos não se concretizem como esperado. Apesar de a justificativa parecer banal à primeira vista, existem tantas camadas por baixo dela, que tudo se torna grandioso, quanto mais nos aprofundamos na proposta do roteiro.

A jornada de Beau para chegar até a residência de sua mãe é marcada por percalços no meio do caminho. O surgimento de figuras de importâncias variadas – que parecem ambíguas demais para que possamos fazer algum juízo de valor irretocável – transforma a trajetória em algo cansativo e penoso de percorrer, no que me pareceu uma triste (mas, muito pertinente) alusão à inexorável passagem de tempo, quando coisas simples ganham dimensões maiores e as dificuldades deixam de ser exceção.

A narrativa de “Beau tem medo” não é algo fácil de acompanhar, já que os questionamentos que vão surgindo criam perspectivas que talvez nem tenham sido pensadas por Ari Aster, mas que são frutos da experiência pessoal de cada um que assistir ao filme que chega com a classificação tripla de terror, comédia e drama e se equilibra com maestria entre todas elas.

Como nos deixamos levar – para o bem ou para o mal – por relações familiares, o quanto de nossas histórias é moldado pelo que o outro espera de nós, tudo acaba influenciando a maneira como seremos envolvidos pelo que é mostrado em tela e não parece improvável imaginar que as reações irão das lágrimas aos questionamentos, do incômodo ao arrependimento. E isso é notável.

Até pelo que foi apresentado em partes no trailer oficial, já era previsto haver passagens visualmente incríveis, em especial no que diz respeito à inserção de Joaquin Phoenix em cenários animados. E, se há algo a destacar são as atuações sublimes de todo o elenco, cuja escalação é uma das mais acertadas dos últimos tempos.

Por fim, menção aos valorosos detalhes – visuais e sonoros (incluindo a execução da clássica “Everything I own”, de Bread) – pequeninas peças de um quebra-cabeça que transita entre o inspirador e o duvidoso, tal qual a vida real.

Permita-se viver a experiência de assistir a “Beau tem medo” nos cinemas.

por Angela Debellis

*Texto originalmente publicado no site A Toupeira.

Comments are closed.