Tive a oportunidade de assistir, lá pelo ano 2009, “Gomorra”, de Matteo Garrone, e conheço as principais características como diretor. Em “Eu, Capitão” (Il, Capitano), ele as reitera: descrição crua, com marcada violência de máfias implacáveis, ainda que misturadas com personagens direta ou indiretamente nobres, e o caminhar de algumas pessoas à procura de uma vida melhor. Seus relatos apresentam uma espécie de aventura nada simples e com nuances assustadoras.
Nesta ocasião, o realizador abraça um tema polêmico como é a migração de africanos para Europa, em particular para a Itália. Porém, não se centra apenas na chegada dos miseráveis a esse país; decide ir até o coração da questão, isto é a origem dos motivos que impulsionaram, compulsivamente, essas pessoas a arriscar suas vidas à procura de melhores condições.
A filmagem os acompanha, detalhadamente, em um percurso que pode resultar não apenas complicado, mas dificílimo, e até sinistro e mortal: parte de Dacar, a capital de Senegal, onde moram dois jovens, Seydou (Seydou Sarr) e Moussa (Moustapha Pall).
A câmera de Garrone (sob a responsabilidade do iluminador Paolo Carnera) não vacila: Dacar é uma cidade com ruas de terra, empoeiradas, vultos com diversos conteúdos, sacos de areia, resíduos desagradáveis, animais soltos, pessoas vagando sem rumo definido, construções desalinhadas etc. Em uma dessas casas mora Seydou. Há aglomeração e jovens de ambos os sexos coexistem, ainda que sem chegar à promiscuidade total.
Sem perspectivas claras na vida, o caminho de Seydou e Moussa só parece ter um objetivo melhor se eles fossem embora, mais exatamente para outro continente. Embora tenham poupado dinheiro para tal viagem, as advertências da mãe (Ndeye Khady Sy) e outros diversos personagens são drásticas: tentar essa viagem significaria, irremediavelmente, o pior. É provável, até a morte.
Como jovens que são, além de ocultar seu plano, ficam decididos e partem com um destino claro e um percurso, ainda que não saibam, de crueldade extrema. As desventuras dos dois rapazes são – como um deles dirá – uma passagem pelo inferno. O diretor não faz concessões e mostra situações duras, com imagens absolutamente dolorosas, incluindo até delírios e alucinações, por momentos estranhos, mas, simultaneamente, procurando alguma beleza.
O filme não tem toda essa carga de modo gratuito, há um propósito: desvendar qualquer ilusão – no sentido de ilusionar, dissimular e, também, não ocultar canalhices de todo tipo. Contudo, também há uma cota de carinho, companheirismo e solidariedade. Às vezes, também, ambas as características se misturam, como uma terceira possibilidade que não se deve esquecer – por exemplo: ajudas salvadoras que não são tão puras e possuem margem para o benefício próprio.
O espectador pode ter diversos sentimentos: indignação e impotência perante o desfile de situações cruéis e injustas, produzidas pelas abusadas atitudes dos aproveitadores das fraquezas e necessidades; compaixão com aqueles que moram em péssimas condições e tratam, desesperada e ilusoriamente, de migrar, de fugir para algo diferente, melhor.
E lembrar – talvez junto com os personagens – das advertências prévias, feitas de diversos modos e com tons que procuram ser contundentes. O final poderá ter diferentes interpretações no público, sempre nessa procura.
Nomeado para o Oscar na categoria de Melhor Filme Internacional, “Eu, Capitão” disputará com outros quatro títulos também com virtudes inegáveis: “Dias Perfeitos”, “A Sala dos Professores”, “A Sociedade da Neve” e, sobretudo, “ Zona de Interesse”. Independente da premiação, o trabalho de Matteo Garrone e seus colaboradores tem obtido um lugar de destaque no panorama cinematográfico mundial.
Tem a seu favor a devastadora força de seu tema. Seu relato linear é pautado por momentos impactantes dimensionados pela mencionada fotografia de Paolo Carnera (que soube aproveitar a desoladora imensidão do deserto do Saara).
Tudo em função de uma obra que é quase um documentário ou testemunhal baseado em depoimentos prévios às filmagens de diversas pessoas, sobre o que está acontecendo com africanos tanto em seu próprio continente quanto na Europa, seu destino de chegada.
por Tomás Allen
*Texto originalmente publicado no site A Toupeira.
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