Crítica: “Criaturas do Senhor”

Até que ponto o amor de uma mãe pode se sobrepor à justiça e verdade com os outros à sua volta? Até quando mentiras podem encobrir defeitos que sentimentos inatos nos impedem de enxergar?

Essa é a premissa de “Criaturas do Senhor” (God’s Creatures) que pode ser simples (e até mesmo batida), mas que se desenvolve de maneira impactante através do roteiro de Fodhla Cronin O’Reily e Shane Crowley.

A trama gira em torno do inesperado retorno de Brian O’Hara (Paul Mescal) para o seio familiar, após uma misteriosa temporada passada na Austrália – período em que não entrou em contato com ninguém e sobre o qual não está disposto a entrar em detalhes – o que já é um indício de que algo errado pode ter acontecido durante a viagem.

Ao contrário do pai Con (Declan Conlon) – que não fica satisfeito com a volta do filho – sua mãe Aileen (Emily Watson) não esconde a alegria pelo reencontro, deixando bem claro – ainda que não expresse  em palavras – sua predileção por Brian, em detrimento à Erin (Toni O’Rourke), sua outra filha.

O cenário no qual ocorre a história é um remoto vilarejo no litoral da Irlanda, onde a principal atividade comercial é a pesca, mostrada em todos seus estágios – da captura dos peixes à venda após passar pela distribuidora de frutos do mar que é a mola propulsora do local.

Claramente, há algo de estranho com Brian, ainda que, em sua superfície, ele tente esconder qualquer falha em seu caráter. Mas, se isso é fácil de ser visto pelos espectadores, o mesmo não acontece com Aileen, que, em prol do filho, torna-se capaz de infringir a lei – seja praticando furtos para ajudá-lo a se reerguer financeiramente ou cometendo perjúrio quando ele é acusado de estupro.

A grave acusação se dá por Sarah Murphy (Aisling Francioli), ex-colega de infância de Brian e funcionária da distribuidora em que Aileen atua como supervisora. Embora o ato não seja explicitado no longa, a declaração da jovem em nenhum momento deixa dúvidas sobre o ocorrido, o que torna qualquer omissão ainda mais dolorosa e inaceitável.

Dirigido por Anna Rose Holmer e Saela Davis, o filme convida o público a fazer uma franca reflexão sobre a importância da família (com todos os erros e acertos que tal relação nos impõe no decorrer da vida) e os limites que não deve ser ultrapassados quando o amor e a lealdade materna são postos à prova.

Tudo visto sob a fotografia de Chayse Irvin, que, através de tomadas escuras e frias, aumenta ainda mais a sensação de desamparo, seja pela rotina implacável vivida pelos habitantes do vilarejo ou pela injustiça de se fechar os olhos à verdade – quando esta parece cruel demais para ser aceita, afinal, como diz uma personagem em dado momento: “Ninguém vê o que acontece ao redor”.

Aliada ao ritmo propositalmente lento da narrativa, a incômoda (entenda-se eficaz no que se propõe) trilha sonora de Danny Bensi e Sauder Jurriaans torna-se quase uma figura à parte e é o detalhe que completa a receita de “Criaturas do Senhor”. A insatisfação que paira no ar (mesmo quando as reações esperadas pela sociedade surgem tão forçadas) ganha forma através de cada acorde.

Sem o intento de agradar a todos os públicos, a produção é válida, em especial, para conferir o bom trabalho da dupla Emily Watson e Paul Mescal – que segue merecendo elogios – e pela coragem de se tomar algumas decisões que podem surpreender.

por Angela Debellis

*Texto originalmente publicado no site A Toupeira.

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