Artigo: O Caso “Passagens” e a Classificação Cinematográfica

No último dia 17 de agosto estreou nas salas de cinema do Brasil o filme que dá título a este artigo. Trata-se de uma produção francesa, de um diretor estadunidense e elenco e pessoal técnico de diversas origens. Como é habitual, o longa foi comentado neste site.

Porém, “Passagens” é um caso bastante especial, dada sua trama, envolvendo relações afetivas e sexuais muito oscilantes e diferentes manifestações da sexualidade (heteros, bi e homoafetivas). E, também, por conter algumas cenas com relações bastante explícitas. Em particular uma, prolongada, entre dois homens.

O grau de tal explicitude chegou ao limite, sem ser total. De nenhuma maneira se trata de um filme do gênero pornográfico nem aquelas cenas contêm imagens de órgãos sexuais. Mas, ainda com extremo cuidado no registro fotográfico, chama a atenção e, seguramente, poderá incomodar ou desagradar a alguns espectadores.

Tudo isso faz refletir sobre a classificação etária que tem ou deveria ter uma obra com tais características. Ou, melhor, sobre toda classificação da exibição pública dos filmes. Para começar, há um par de pontos básicos sólidos:

– Todo filme pode ser visto por adultos. Entram, por definição geral, na maioria dos países, incluindo o Brasil, aqueles que têm mais de 18 anos de idade e para a Organização Mundial da Saúde são adultos-jovens os que têm entre 20 e 24 anos. Um adulto não deve estar submetido a proibição de censura. Os maiores podem escolher livremente o que ver e o que não. A interferência de outros sobre quem pode assistir um filme representa um ato ditatorial que não tem defesa ou justificativa porque não é lógico que um adulto veja um determinado material e defina arbitrariamente que outro não pode fazê-lo.

– Os menores de idade devem ser protegidos de certas imagens que representem um “perigo concreto de perturbação nas ordens intelectual, afetiva ou moral” (1). Não é fácil definir mais exatamente o que pode perturbar, porém há critérios que orientam em tal sentido. Por exemplo, os definidos nos Estados Unidos: “Temas, linguagem, nudez, sexo, violência ou outros materiais que (…) possam ser nocivos para menores” (2). E no Brasil, em modo similar, consideram-se: ”três eixos temáticos distintos: “sexo e nudez”, “drogas” e “violência“. (3)  não resultam adequados emocional ou moralmente para a personalidade de crianças e até adolescentes.

Prosseguindo com “Passagens”, é uma obra que se pode definir como não apta para menores. Ou, melhor: é um filme para adultos – por temática e por imagens. Não se trata de definir a qualidade artística nem o valor social do mesmo, nem se dá lugar a preconceitos. Simplesmente se entende que pode perturbar a menores e até adolescentes. Isto pela temática geral, pelo caráter que tem os vínculos dos personagens e, principalmente, por cenas que apresentam imagens bastante detalhadas de relações sexuais.

Nos Estados Unidos da América

A discussão é pertinente porque o filme teve alguns inconvenientes e sua classificação levantou polêmicas em alguns países. Para começar, no próprio Estados Unidos (EUA), onde foi definida como NC-17 pela Administração de Qualificações (integrada pelas produtoras e distribuidoras Paramount, Sony, Universal, Walt Disney, Warner e Netflix).

Nos EUA as categorias etárias são as seguintes: G (General, todas as idades são admitidas); PG (acompanhamento parental é sugerido; alguns materiais podem não ser adequados para crianças); PG-13 (os pais são fortemente advertidos; alguns materiais podem ser inapropriados para menores de 13 anos); R (restringido; para ingresso de menores de 17 anos se requer acompanhamento dos pais ou adultos responsáveis); NC-17 (os que tenham 17 anos ou menos não podem ingressar na sala de exibição). (4)

Portanto, esta última é a única categoria que não permite ingresso de menores às salas, nem com a companhia dos pais. Na definição do manual de regras, editado pela organização responsável (MPA – Motion Picture Association), se esclarece que “NC-17 não significa ‘obsceno’ ou ‘pornográfico’ no senso comum ou legal destas palavras”. E que também não significa “um juízo negativo em nenhum sentido (mas) simplesmente uma sinalização de que o conteúdo é apropriado só para público adulto.” O intuito é “informar aos pais do nível de certos conteúdos” (5).

Isso, em geral, mas, como dito, na NC-17 o ingresso está vetado para menores de 17 anos ou menos. Como diz o cartaz de advertência pública dessa categoria, é “claramente para adultos”. (6).

No Brasil

“A classificação é indicativa (e) tem natureza pedagógica e informativa, capaz de garantir às pessoas e às famílias o conhecimento prévio para escolher diversões e espetáculos públicos adequados à formação de seus filhos (etc.)” Por tanto, a partir do ano 2007 não há proibição de ingresso e sim, por meio de critérios, indicação de faixas etárias. Isso, para permitir que “o cidadão possa selecionar aquelas que deseja deixar disponível aos menores sob sua responsabilidade”. (7)

Não se permitem classificações que proíbam “a exibição de obras (…ou ) promovam cortes de cenas (…) ou se solicite a exclusão de conteúdos”. As categorias são: Livre; não recomendado para menores de 10 (dez) anos; de 12; de 14; de 16 e de 18 (dezoito) anos de idade. Essa última permitirá a autorização de acesso por parte dos responsáveis de “adolescentes com idade igual ou superior a dezesseis anos”. (8)

Trata-se, por isso, de um sistema sem censura nem proibições, deixando ao critério dos responsáveis (de menores) o acesso às salas de cinema. Aplicando tais categorias a Coordenação de Classificação Indicativa (ClassInd) do Departamento de Promoção de Políticas de Justiça, da Secretaria Nacional de Justiça, organismo do Ministério da Justiça e Segurança Pública, do governo federal brasileiro, que classifica os filmes, definiu Passagens como Não recomendado para menores de 18 anos (simbolizada como A18).

No denominado Guia Prático de Classificação Indicativa (9), organizado pela Secretaria Nacional de Justiça, agrupam-se três elementos a serem considerados para definir o que é prejudicial ao desenvolvimento psicológico da criança: violência, sexo e drogas. Aparecem indicadores para enquadrar as faixas etárias as que não se recomendam.

No caso de “Passagens”, o item sexo e nudez foi determinante. E, como no Guia Sexo Explícito e Situação Sexual Complexa/de forte impacto, são elementos que permitem incorporar na faixa etária de 18 anos, o comitê entendeu que isso era o pertinente, o fez dessa maneira. (10)

Por isso, no Resumo da Análise deste título [“Passagens”], na conclusão – Tendências definidoras da classificação atribuída -, depois dos detalhes e considerando atenuantes e agravantes, se diz: “A apresentação de uma cena extensa que conjuga nudez, vulgaridade e relação sexual intensa, cujo impacto imagético é bastante potencializado por composição de cena, foi determinante para a classificação da obra”. (11)

Soa como bem fundamentada a decisão.

Na Argentina

Este é um país que padeceu uma rígida ditadura militar entre os anos 1976 e 1983. Como parte da repressão, vigorou uma censura cinematográfica que cortou e proibiu 727 filmes que foram apresentados para sua classificação antes da exibição pública ao organismo denominado “Ente de Calificación Cinematográfica”. Isso sem contar os títulos que os distribuidores não apresentavam porque sabiam que seriam proibidos.

A partir de março de 1984, com um governo escolhido em eleições nacionais, se modifica a lei que estabelecia a intervenção do Estado, passando de uma censura (Nº 18.019) a outra situação (Nº 23.052) que, pode ser dito, “proíbe proibir”. Este sistema, aprovado no Congresso Nacional em 22 de fevereiro de 1984 e iniciado em 26 de março desse ano vigora até hoje, só com algumas modificações de funcionamento,  já que na atualidade participam unicamente representantes dos organismos do Estado vinculados à cultura e ao cuidado dos menores.

Segundo os decretos regramentários da Ley 23.052, estabeleceram-se as seguintes categorias etárias: Apta para todo público, Só apta para maiores de 13 anos, de 16 anos, de 18 anos e Só apta para maiores de 18 anos de Exibição Condicionada (esta última como grau máximo de advertência, para exibições em salas específicas, destinadas a material especial – sexo explícito, violência extrema, etc.).

Um novo organismo (Comisión Asesora de Exhibiciones Cinematográficas – CAEC), dependente do Instituto Nacional de Cinematografía e com representantes de oito instâncias diferentes, tanto oficiais quanto de agrupações como jornalistas críticos de cinema e cultos religiosos, começou a ocupar-se de definir onde encaixa cada título nas diferentes categorias. Isto, sem censura e apenas atendendo a proteger os menores e advertir os adultos de “exibições que possam ofender a sensibilidade ou o pudor sexual médio de indivíduos razoáveis”. (12)

Como antes dito, hoje participam apenas designados por organismos do Estado o que pode implicar uma diminuição de pluralidade de opiniões – além de representações anteriores até poderiam ser incorporadas novas agrupações, como ONGs. reconhecidas, etc.

Justamente nos últimos dias a CAEC enquadrou “Passagens” (Pasajes) como “Só apta para maiores de 16 anos – Com reservas ”. Esta última expressão (‘Com reservas’) implica uma advertência adicional à categoria básica. Mas não impede o ingresso de pessoas entre os 16 e os 18 anos (ou mais).

Após existir mais de 40 anos e ter a mesma linha de coordenação após os anos iniciais, não há indícios ou informações que a CAEC tenha um manual ou documento com critérios precisos, nem detalhe as eventuais análises efetuadas para classificar cada obra. Ter essas pautas prévias ajudaria a evitar eventual imediatez e espontaneísmo na tarefa o que, por sua vez, poderia favorecer classificações oscilantes ou com idades mais baixas.

Porque, por exemplo, no caso de referência, podem ficar dúvidas sobre os fundamentos de tal determinação. Poderia-se perguntar: por que “Passagens” não foi para “Só apta para maiores de 18 anos”? Por qual motivo a CAEC não a definiu para adultos?

Utilizar a categoria de máxima restrição não é um erro em si, não deveria ser entendido como um problema ou um tabu. Esta produção não deixa de ter elementos que podem, sim, perturbar os menores de 18 anos de idade. Em casos assim, não resultaria apropriado argumentar que as cenas de sexo perturbam menos que as de produções muito violentas, macabras, etc. Porque o caráter perturbador de umas não exime das outras. Ambas podem ser classificadas “para adultos”.

Baixar a faixa de acesso – neste caso permitindo assistir a partir dos 16 anos – deve ter argumentos realmente sólidos. Aqui também não deve interessar a maneira como agem outros países no sentido de liberar filmes com conteúdos supostamente mais perturbadores. Muito menos, o fato que uma classificação ‘elevada’ (para maiores de 18) eventualmente reduza ou aumente o número de espectadores que assistirão a esse título. E a legislação básica na Argentina define o objetivo; é objetiva: proteger os menores e advertir aos adultos, quando corresponda.

No caso particular da Argentina, conseguiu superar a nefasta censura cinematográfica tanto para produzir quanto para exibir. Será que ainda deve ter maior precisão justamente para proteger os menores de idade?

A modo de resumo

“Passagens” resulta ser um exemplo interessante para refletir e debater sobre um assunto socialmente relevante: a importância das imagens cinematográficas nos espectadores. Principalmente em menores e adolescentes.

A sociedade, em seu conjunto, e os estados para além dos governos ocasionais, devem prestar atenção nesta temática, criando critérios cuidadosos, designando pessoas idôneas para aplicá-los, e debatendo-os em forma pública e privada, e controlando – quando corresponda – as idades ao ingressar os espectadores nas salas.

Citações:

(1) Regulamento e Decretos de Lei Nº 828 e 3899/84 do ano 1984, na Argentina.

(2) filmratings.com/Content/Downloads/rating_rules.pdf

(3) Classindaudiovisual_Guia_27042022versaofinal.pdf

(4) Regras de classificação de filmes do comité (“CARA”), no manual de apresentação do sistema para os pais nos Estados Unidos da América, em julho de 2020. Também em: Classificação and Rating Rules, da Motion Pictures Association, de 2020 (cara_rating_bulletin.pdf)

(5) Op cit.

(6) O cartaz diz: NO ONE 17 AND UNDER ADMITTED / Adults Only / NC-17 Reasons box. Fill in Rating Reason Here. Reasons Box. Fill In Rating Reason Here.- No One 17 and Under Admitted.

(7) Lei 8069, de 13 de Julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), Livro I – Título I – Capítulo II – Seção I – Artigo 74 e Portaria 1189 de 3 de Agosto de 2018 – Capítulo I – Seção II – Artigo 6º

(8) Op.cit. Seção II – Artigo 7 º –

(9) Guia Prático de Classificação Indicativa, Brasília, Secretaria Nacional de Justiça, 2022. 4ta. Edição e Portaria  502SEl.pdf.

(10) Classindportal.mj.gov.br/Consulta-filmes

(11) Op. cit (em: Detalhes: Passages)

(12) Decreto 3899/84 do Poder Ejecutivo Nacional, assinado em 14/12/1984

Eduardo Tomás Pánik foi integrante da Comissão Assessora de Exibições Cinematográficas do Instituto Nacional de Cinematografia e Artes Audiovisuais da Argentina. Participou na definição por faixa etária e sem censura de 1.300 títulos, desde o primeiro classificado em 26 de março de 1984 até dezembro de 1992.

É professor, mestre e doutor, tendo participado também em Júris nos festivais internacionais de cinema de Berlim e de Cannes.

Crédito da imagem: https://www.pexels.com/pt-br/foto/claquete-branco-e-preto-274937/

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