Crítica: “Dias Perfeitos”

“Os milagres são uma narração em letras miúdas da mesma história que está escrita por todo o mundo em letras grandes demais para que alguns de nós leiam”. A belíssima citação do autor escritor irlandês C. S. Lewis serve para resumir de forma bastante eficiente, o drama “Dias Perfeitos” (Komorebi / Perfect Days).

Desde as primeiras cenas do longa dirigido por Win Wenders (que também escreve o roteiro junto a Takuma Takasaki), é possível observar os contrastes que permearão o caminho da produção. Assim como, desde os minutos iniciais, é fácil dizer que a sisudez imposta pelo concreto das edificações nunca será páreo para a beleza incomparável das árvores que permanecem trazendo frescor a um visual tão pouco inspirador quanto o das grandes metrópoles.

A trama passada em Tóquio nos apresenta Hirayama (Koji Yakusho), homem de meia-idade que vive sozinho em um pequeno e modesto apartamento, cercado por objetos que remetem a outras épocas, quando a tecnologia ainda não ocupava nossas vidas de maneira tão invasiva.

Entre seus “tesouros”, vêem-se estantes repletas de livros impressos (muitos adquiridos em sebos locais), uma vasta coleção de fitas cassete (de ícones musicais que vão de Patti Smith a Van Morrison, de Janis Joplin a Nina Simone), um rádio portátil, e uma inseparável câmera fotográfica analógica (com a qual registra, diariamente, as mudanças nas folhagens de uma árvore no parque, em uma linda ação que, inclusive, nomeia o filme em seu título original). Sua simpatia para com a natureza também ganha a forma de várias mudas cuidadas com rigor por ele.

Ver Hirayama conviver tão pacificamente com a própria solitude, nos dá a sensação de que é possível enxergar beleza nas coisas, por mais improváveis ou rotineiras que sejam – o que é, em geral, um duro, mas muito válido exercício a ser praticado durante toda a nossa vida.

A natureza singular e de poucas palavras do personagem faz um excepcional contraponto em todas as cenas em que ele parece interagindo com o jovem falador Takashi (Tokyo Emoto) – outro funcionário do projeto The Tokyo Toilet, empresa para a qual trabalha, com quem divide o turno matutino de limpeza e manutenção dos banheiros públicos (e altamente tecnológicos) da capital japonesa.

Esta é uma obra de detalhes. Seja pelo sugestivo nome da bebida que Hirayama toma todas as manhãs, pela ambiguidade do sorriso dado ao início de cada dia – que tanto parece carregar satisfação, quanto certo vazio – ou pela disparidade de informações capaz de criar um abismo geracional, mas não diminui o respeito e a admiração entre o faxineiro e sua sobrinha Niko (Arisa Nakano). Ou, apenas, pelo agradável fato de nos conectarmos à história, conforme nela avançamos.

“Dias Perfeitos” chega às telas dos cinemas brasileiros, como indicado do Japão ao Oscar de Melhor Filme Internacional. Entre os muitos destaques, cabe salientar a excelente trilha sonora formada por clássicos das décadas de 1960 a 1980 (inclusive, o título americano remete à canção homônima de Lou Reed, que pode ser ouvida em uma cena).

Mas, o grande êxito do longa é mesmo a interpretação de Koji Yakusho, que, com justiça, lhe rendeu o prêmio de Melhor Ator no Festival de Cannes 2023). Através de um texto tão restrito quanto pede seu papel, ele consegue passar, com maestria, cada sentimento de Hirayama, mesmo quando a escassez de palavras configura-se como um artifício para tentar superar ou esconder determinados fatos.

A verdade (simples, mas nem sempre aceita com facilidade) é que devemos enfrentar nossas próprias sombras, para alcançar e dar valor à luz. Quando existe suavidade na alma, não há dureza do cotidiano que se mostre capacitada a sobrepujá-la.

por Angela Debellis

*Texto originalmente publicado no site A Toupeira.

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